Ensaio│Idolatria rasgada ao Chico Buarque, sem mais

Por: Ketllyn Fernandes

Chico Buarque 02

O meu pai era paulista

Meu avô, pernambucano

O meu bisavô, mineiro

Meu tataravô, baiano

Vou na estrada há muitos anos

Sou um artista brasileiro (Paratodos, lançada em 1993)

“Vou na estrada há muitos anos”, diz a canção lançada aos 49 anos por Chico Buarque de Holanda, ou simplesmente Chico para entendedores do que esse diminutivo de Francisco representa. “Chico é Chico”, ouço e falo sempre quando a conversa na mesa do bar ou em qualquer outro lugar cai nele, o que se depender de mim ocorre com facilidade. A ocasião mais recente se deu quando perguntei ao produtor cultural que trouxe Adriana Calcanhotto sobre as possibilidades de um show do Chico em Goiânia num futuro não muito longe. Eu já previa o teor da resposta, mas não custa nada perguntar, ossos do ofício. “É muito trágico”, iniciou. “É porque ele só toca quando quer e no formato que quer. Tanto que, da última vez, ele fechou só em Rio, São Paulo e Porto Alegre, mas, CHICO É CHICO NÉ?”, me disse em tom de voz explicativa pelo áudio do WhatsApp. Pois é, assunto encerrado de minha parte — pois não cabe a uma chicólotra (com uniforme e tudo) entrar na seara de que Chico Buarque possa ser ensimesmado.

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Conto | Através da chuva, Adele Lazarin

A chuva se intensificou ao seu redor. Gotas gordas batiam sobre o seu enorme guarda-chuva vermelho enquanto o vento teimava em querer fazê-lo voar para longe. Lisa segurava forte enquanto seu cabelo, embora preso em dois rabos de cavalo laterais, batia desgrenhado em seu rosto. A sua tentativa de manter-se seca parece ter-se tornado inútil, já que o vento possibilitava às gotas de a encontrarem mesmo com um gigantesco guarda-chuva sobre sua cabeça. Mas era uma questão de honra para a garota manter-se firme. Ela não seria vencida pela chuva.

Lisa tinha apenas 12 anos, mas já sabia o que queria na vida. Ou melhor, o que não queria. Ela não queria ser como seus pais, não queria ser como seus irmãos, não queria ser como seus professores e não queria ser como nenhuma outra pessoa daquela cidade onde nascera e vivia. Lisa queria ser livre. Queria conhecer o mundo e descobrir que ele poderia oferecer muito mais do que falavam a ela. A sua vã tentativa de domar seu guarda-chuva provinha da frustração de não poder controlar a sua própria vida.

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Perfil│A luz de Maria

por: Amanda Costa

Maria, Maria, Maria é sorriso, alma e coração. Jovenzinha arretada se fez mulher na cidade de Porto Nacional, estado do Tocantins. Cigana sensual, casou, descasou e casou de novo. Hoje vive a alegria dos 63 anos bem vividos. Companheira inseparável do marido Severino de vida severina.

Moradora do Itatiaia em Goiânia, capital de Goiás, Maria é daquelas pessoas que não passa despercebida. As saídas sempre rápidas são para o supermercado, a feira e as vizinhas. Ela gosta de um dedo de prosa. Muito carinhosa embrulha em papel de presente as palavras: nega, linda, querida… Pessoas como a dona Maria deviam se multiplicar por mil.

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Leitura│A metamorfose, de Franz Kafka

Por: Patrícia Machado

Gregor Samsa tornou-se um inseto, assim sem mais, nem menos. Mas a questão não é como ele se tornou um besouro, e sim as implicações que resultam disso. É improvável imaginar alguém repentinamente tornar-se um besouro (ou seria uma barata?) da noite para o dia, mas Kafka nos faz crer que é real. Faz mais: faz-nos vivenciar o drama de Gregor.

Se se opera uma metamorfose física com Gregor, o que dizer da mutação do seu valor perante a família? De sustentáculo da casa para o indesejável, o repugnante… O caixeiro-viajante que vivia até então para sustentar financeiramente a família (o pai, o senhor Samsa, a mãe e a irmã Grete) perde sua utilidade, deixa de ter seu valor. De homem responsável à coisa que se deve esconder, à coisa que se deve desejar a morte. Ao longo do drama, vemos o quanto a família não pode lidar com a situação, o vendo como um estranho, um estorvo. Mesmo a irmã, a quem tudo Gregor queria ofertar, o odeia, o quer longe. A princípio, tudo isso me fez pensar na hipocrisia inerente às relações humanas e tive medo. Continuar lendo

Perfil│A arte de recriar

por: Amanda Costa

É na desilusão que sobra espaço para pensar. Pensamentos muitas vezes escapados pelas mãos, mente e coração. É na queda que ganhamos força para ressurgir. Nem que seja uma subida mínima de um único degrau. É no desemprego que o ganha pão se torna árduo e a criatividade aflora. Assim é para mim, para você e foi para Silvio Di Oliveira.

Jardineiro por 18 anos em um hospital particular de Goiânia, Silvio podou ressentimentos e teve que fazer brotar sorrisos, mesmo após uma demissão. Pai de 4 filhos tão acostumado as flores, teve que colher desespero, angustia e medo por alguns meses. Viu-se desesperado tentando encontrar uma saída.

– Fiquei igual ‘passarim’ sem asa. Desorientado mesmo. Muitas vezes chorava e desabafava com a minha esposa Irani ‘Fui tão honesto e passando por isso’.

Dificuldade, esta da vida, que lança grandes desafios. Silvio encarou o inimigo, ou melhor, o desemprego de frente. Chorou! Caminhou. Bateu em muitas portas. Pediu. Suplicou. Voltou para casa mais um dia de mãos vazias. Em frangalhos dormiu um sono que ele jamais esqueceu:

– Sonhei que estava pintando um girassol e as folhas de um coqueiro me estorvava.

Acordou convicto que a partir daquele dia iria para as ruas pintar quadros. Arte essa que nunca tinha se atrevido, nem mesmo nos tempos da escola primária no município de Formoso.  Continuar lendo

Ensaio│Das cem solidões ao adeus

Por: Déborah Gouthier

Disseram-me que, muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Eu, todavia, não me lembro do dia em que me levaram para conhecer os Buendía. Ninguém me tomou pela mão ou fez as apresentações formais que a ocasião sugeria.

Sei que me veio em gotas. Ou em turbulências. Lembro-me das tantas vezes que pousei o livro para retomar as contas ou refazer aquela imensa árvore genealógica. Sei que se fosse outro, eu talvez tivesse desistido na metade, do cansaço das vistas ou desculpa qualquer. Mas não era outro. Era ele. O gênio colombiano, o Melquíades das palavras. O Gabo.

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Poesia|Arte, Fernanda Cruz

Fernanda CruzFotografia: Francisco Folle Beraldo

Fernanda Cruz: poetisa e autora dos livros Regatos do Instante (2008) e O ar mais próximo (2013), ambos editados pelo selo “Prosa e Verso.

Folle: Fotografo especializado em fotografia analógica e scanner, utiliza materiais que tem em casa pra fazer arte. Para conhecer mais de seu trabalho, entre aqui: http://cargocollective.com/ffolle

 

Ensaio│Ela

Por: Renata Bittes

Há muito tempo um filme não me intrigava tanto. Assim como muita gente, assisti vários filmes indicados ao Oscar. Mas nenhum me ganhou tanto como Ela.

Sou da geração Y. Provavelmente é o último grupo de pessoas que viveram com e sem a internet. Não minto que sou viciada no meu smartphone, investi no meu notebook e gosto de me atualizar sobre tecnologia.

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